Vivendo e Aprendendo….

Dra Mercêdes J O Alves

Secretária da Associação Mineira de Psiquiatria – AMP

Secretária da Associação Brasileira de Estimulação Cerebral – ABECer

Buscando na memória escrita os registros sobre os avanços na descoberta dos recursos terapêuticos hoje disponíveis e a serviço da comunidade científica psiquiátrica, encontramos questões surpreendentes. Imaginar, por exemplo que na quarta década depois de Cristo (dC), Scribonius Largus (14 – 54 dC), médico do imperador romano Claudius, publicou em Compositiones Medicae, uma técnica para alívio da dor de cabeça que consistia na  descarga elétrica de um peixe de água salgada (peixe torpedo) capaz de gerar uma diferença de potencial elétrico de até 50 Volts, nos faz pensar.

Também o fato do peixe-gato ter sido usado pelo médico espanhol Ibn-Sidah, para controle das epilepsias, ainda no século XI, ou que ao final do Século XVIII a eletricidade passou a ser a atividade científica mais popular da fase do Iluminismo, envolvendo desde experimentos domésticos até investimentos nas universidades, sempre emoldurados, à época, pela Revolução Industrial.

Sabe-se que as sensações corporais eram a base da prova do efeito da eletricidade, e é possível que seu uso terapêutico tenha aí se fundamentado

Acompanhar o desenvolvimento do conhecimento do que hoje praticamos como técnicas de estimulação cerebral ou neuromodulação não invasiva, nos leva a percorrer longo caminho que envolve basicamente a eletricidade. Parece que a história da neuromodulação elétrica não invasiva se confunde com a história da própria eletricidade. Assim, o período entre 1750 e 1950, quando surgiram a Eletroconvulsoterapia – ECT (1938) e a farmacoterapia (clorpromazina em 1952) poderia ser descrito como “Era Elétrica”, tendo como continuum histórico a “Era Magnética”, que se estende até a atualidade, sem perder, naturalmente, a sua característica elétrica, de origem. Sim. Elétrica de origem, e foi Michael Faraday (1791-1867), em 1831, que postulou sobre essa transformação de energia elétrica em magnetismo. Esta foi a base para o uso de magnetismo transcraniano no diagnóstico e no tratamento de doenças, quase 100 anos depois.

Abriram-se caminhos nas diversas ciências.

Inúmeras teorias e discussões surgiram e alimentaram os encontros entre os cientistas da época. Alessandro Volta (1737-1798), na tentativa de provar que o tecido animal não possuía uma “eletricidade especial”, como defendia seu rival italiano Luigi Galvani (1737-1798) sobre seus experimentos com pernas de rã, terminou inventando a primeira pilha elétrica e entrando para a história da eletricidade. Grandes nomes se envolveram em experimentos absolutamente surpreendentes, como o de Giovani Aldini (1762-1834), sobrinho de Galvani que passou a realizar demonstrações macabras em criminosos recentemente executados, que apresentavam fasciculações e contorções após a aplicação da eletricidade sobre suas cabeças, criando inspiração para o romance Franksestein, de Mary Shelley, em 1818.

Henry Maudsley (1835-1918) e Sigmund Freud (1856 – 1939) impulsionaram os estudos sobre as doenças mentais, embora a Psiquiatria só viesse a se constituir em especialidade médica após o início do Século XX. Os profissionais que se dedicavam aos estudos dessas patologias eram chamados de “Os alienistas”.

Em 1938, Ugo Cerletti (1877-1963) e Lúcio Bini (1908-1964), discípulos de Ladislas Von Meduna (1896–1964) que usava cânfora para provocar convulsões, inauguraram o uso da eletricidade para o mesmo objetivo, com sucesso, dando início à ECT.

Entre 1910 e 1914, Arsène d’Arsoval (1851–1940) em Paris e Sylvanus Thomson (1851-1916) em Londres, fizeram as primeiras tentativas usando aplicação de campos magnéticos, mas a primeira aplicação de sucesso, sobre o escalpe, foi feita por Anthony Barker (1954) em 1985.

Seus experimentos mostravam que impulsos nervosos iam do córtex motor à medula espinhal, nervo periférico e músculo sendo capazes de gerar contrações de extremidades dependendo da intensidade da corrente e da localização da bobina. Quando comparada aos outros métodos de estimulação transcraniana onde era usada a corrente elétrica, a aplicação do eletromagnetismo reduzia muito o desconforto, permitindo seu uso in vivo. Foi um sucesso.

Pois bem, somos a “Era Moderna” dos tratamentos biológicos da Psiquiatria e com muito orgulho. Vínhamos dedicando grande parte de nossas vidas aos estudos, ao ensino e ao aprimoramento das técnicas elétricas (Eletroconvulsoterapia-ECT) e das magnéticas (Estimulação Magnética Transcraniana-EMT), acreditando estarmos fazendo o melhor possível para nossos pacientes, nossos alunos e a sociedade de modo geral.

Em fevereiro de 2020, surgiu uma novidade que nos alcançou rapidamente e foi capaz de causar grande surpresa: um tal de Corona vírus. Já sabíamos de sua existência desde meados do século XX, mas afinal tratava-se de uma família de vírus elencada como provocadora de doenças respiratórias ou intestinais em aves e mamíferos, que no homem causava uma doença leve, tipo resfriado comum. Mas, no final do ano de 2019, fomos apresentados ao SARS-Cov-2 ,natural da China, de uma cidade chamada Wuhan.

Em janeiro deste ano, pesquisadores da Organização Mundial de Saúde (OMS) foram à China, para tentar descobrir a origem do Corona vírus. Há fazendas localizadas ao sul daquele país, que abrigam animais exóticos, como civeta, porco-espinho, pangolim, cão-guaxinin, rato de bambu, que são criados em cativeiro, como uma maneira de aliviar as populações rurais da pobreza e que provavelmente são a fonte do SARS-CoV-2.

Em 2016, essas fazendas empregavam 14 milhões de pessoas, movimentavam uma indústria de 70 bilhões de dólares.  Foram (ou deveriam ter sido) fechadas no início dos surtos desse vírus. Em Yunnam, também ao sul daquele País foi encontrado um vírus de morcego que é 96% parecido com o SARS-CoV-2. Um cientista da OMS acredita que o Corona vírus foi passado de um morcego para algum animal e, depois, para os humanos.

Nenhum surto de doença anterior afetou a prática da ECT da mesma forma que esta pandemia atual.

A gripe espanhola de 1918 precedeu o desenvolvimento da ECT em mais de 20 anos. O surto de SARS em 2003 teve um alcance mais limitado (8.098 casos e 784 mortes em 8 meses). Não houve transmissão assintomática, o que nesta doença é dramático o fato de podermos transmiti-la até 14 dias antes de surgirem os sintomas que alertem sobre a possibilidade da infecção, tornando a transmissibilidade muito maior devido ao derramamento viral durante a fase assintomática.

Estamos diante, ao lado e no meio de algo inimaginável até a muito pouco tempo. A COVID-19 escancarou para nós a nossa tibieza e fragilidade diante de algo até já bem conhecido, porém sem dispormos das armas que possam nos robustecer. Aguarda-se a vacinação, como se fosse o raiar de novo dia sem a presença incômoda do vírus que não pede licença para se acomodar entre nós, ou em nós. Um vírus que já não é um só. São muitos. De mutação em mutação, provavelmente não abandonará o planeta.

E assim, nos cabe continuar aprendendo, nos adequando e ensinando como proceder. Estamos inaugurando a “Era pós Moderna” da ECT e da EMT, onde o uso de máscaras faciais tornou-se mandatório para os pacientes, para os médicos, para todos os profissionais de saúde e para a sociedade. A higiene frequente das mãos, o uso do álcool 70%, o controle de dados vitais (temperatura, frequência cardíaca, saturação de oxigênio, pressão arterial) e a verificação da qualidade e posicionamento das máscaras faciais, deverão preceder a entrada de todas as pessoas que procurarem nossos serviços de atendimento. O descarte de material usado, hoje incluindo máscaras, toucas, pro-pés, luvas e jalecos deverá ser consciencioso e rigoroso.

Devemos considerar todos os pacientes como potencialmente infectantes porque sabemos que o exame que detecta a presença do vírus (RT-PCR para COVID-19, Swab de secreção naso laríngea) possui uma sensibilidade de apenas 56-83% e uma taxa de até 40% de falsos-negativos.

A ECT não é um procedimento eletivo, conforme entendimento da APA (Associação Americana de Psiquiatria) e trata pacientes gravemente enfermos através de 2 a 3 aplicações por semana, por duas ou mais semanas. Portanto, simplesmente testar para COVID-19 antes do tratamento não é suficiente, podendo o paciente que se apresenta para a ECT estar em pleno derramamento viral assintomático.

A ECT deverá ser feita acoplando um filtro (N 99) à unidade ventilatória entre a válvula e a bolsa. Esse filtro consegue reter 99% das partículas de até 25 nanômetros de diâmetro e o vírus mede 120 nanômetros. Portanto, o filtro maximiza a proteção tanto do paciente na inspiração como do ambiente na expiração.

A EMT deverá prestigiar protocolos rápidos, a modalidade Theta Burst e a EMT acelerada (várias sessões no mesmo dia), diminuindo a frequência dos pacientes na Clínica.

Os equipamentos e seus fios deverão ser higienizados um a um, entre os atendimentos e os pacientes monitorizados, cuidadosamente, por profissionais da equipe já paramentados adequadamente.

A Telemedicina deve ser a modalidade de escolha para as avaliações e tudo o que puder evitar que o paciente tenha que se deslocar para o serviço de saúde deve ser adotado, como o pedido e a análise de exames laboratoriais, apresentação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, envio de receitas digitais com assinatura eletrônica, previsto pela RDC da Anvisa número 357, de 24 de março de 2020.

O ambiente deverá ser bem ventilado e ensolarado. Caso não seja possível, o serviço deverá seguir as recomendações da Associação Brasileira de Ar Condicionado, Refrigeração, Ventilação e Aquecimento (ABRAVA), segundo a Lei 13.589 referente ao Plano de Operação, Manutenção e Controle e Resolução do Ministério da Saúde – ANVISA, a RE-09/2003 (níveis máximos de poluentes como CO2 e fungos).

Deve ser adotado o Livro de Sala que conterá informações de todos que estiveram no ambiente, com dados vitais, horários de entrada e saída, facilitando a análise cruzada futura, caso um dos presentes desenvolva a doença e seja possível avisar quem esteve com a pessoa que adoeceu.

Seguimos as sugestões dos infectologistas quanto ao nosso comportamento do dia a dia, mas seguimos especialmente a sensatez e a lógica, aguardando a vacina e os futuros desdobramentos, vivendo e aprendendo…

 

Belo Horizonte, 29 de Março de 2021

Dra Mercêdes J O Alves

CRM MG 8517

RQE 4802

Secretária da Associação Mineira de Psiquiatria – AMP

Secretária da Associação Brasileira de Estimulação Cerebral – ABECer

 

 

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