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Entrevista com Ricardo Gusmão

“Tudo que é desagradável passou a ser descarregado no serviço de saúde e não é verdade. O sofrimento faz parte da vida”

 

O psiquiatra Ricardo Gusmão foi um dos convidados internacionais da XX Jornada Mineira de Psiquiatria, que aconteceu na sede da Associação Médica de Minas Gerais (AMMG), de 14 a 16 junho. Ele participou também do XIV Simpósio Internacional Diálogos entre a Clínica e as Neurociências com a conferência “A prevenção do suicídio é possível? Mitos, insucessos e oportunidades”, que fez parte da programação da Jornada. Professor do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e do Hospital Egas Moniz em Lisboa, Gusmão é o coordenador nacional da European Alliance Against Depression (EAAD) em Portugal desde 2003. Como psiquiatra, participa de inúmeros estudos colaborativos europeus sobre depressão e sobre suicídio e tem dezenas de artigos internacionais publicados. Em entrevista, Ricardo Gusmão fala sobre o trabalho de combate às doenças mentais na Comunidade Européia, sobre crise financeira e depressão e sobre o papel da mídia no suicídio.

Em linhas gerais, como funciona o trabalho de saúde mental no âmbito da política de saúde pública da Comunidade Européia?

Bom, ontem (na Jornada Mineira de Psiquiatria) eu tentei mostrar o trabalho desenvolvido ao longo de mais de 15 anos em vários países europeus e que se baseia no desenvolvimento daquilo que chamamos no modelo dos quatro níveis. E o que é esse modelo? Basicamente, para efeito da prevenção do suicídio, nós consideramos que devemos agir sempre numa comunidade com fronteiras administrativas bem delimitadas até podermos avaliar o nosso trabalho e também para podermos chegar facilmente aos responsáveis políticos, educativos, policiais, os gestores de vários tipos de organizações como escolas, etc, nessa comunidade. E fazemos nessa comunidade ações de capacitação e formação, treino, promoção, com maior foco na depressão e no suicídio junto com os profissionais da atenção primária. Campanhas de marketing em saúde com cartazes, panfletos, acesso a eventos esportivos, eventos culturais e tentamos atingir a televisão, rádio, etc. Tentamos atingir o máximo de pessoas da comunidade para diminuir o estigma e para sensibilizar para coisas muito básicas, mas que podem fazer toda a diferença para os amigos, familiares e para os próprios indivíduos. E trabalhamos também, no terceiro nível, com aqueles profissionais que estão sempre muito bem posicionados para promover a saúde mental, como por exemplo, no sistema educativo com  professores. Na segurança trabalhamos com os agentes policiais, nas paróquias e as comunidades religiosas, com os sacerdotes. Também trabalhamos com os bombeiros. E o nível quatro é a psicoterapia, a oferta de cuidados especiais, materiais especializados para as pessoas que precisam de cuidados mais especializados. No fundo é isso. Modelo dos Quatro Níveis.

Em sua fala na primeira conferência, o senhor apontou a importância de diferenciar um diagnóstico de doença mental ou depressão com uma tristeza pontual. Como isso se dá? 

Nós não confundimos diagnóstico que é um ato médico com que é detecção que qualquer pessoa pode fazer. Por exemplo, na dermatologia ensina-se às pessoas em campanhas públicas a detectarem sinais estranhos no seu corpo, principalmente se tiverem a pele clara. Na ginecologia ensina-se às mulheres apalpar a mama para perceberem se têm algo de diferente na consistência que as levem a procurar ajuda. Nós (psiquiatras na Europa) fazemos a mesma coisa. Nós damos “armas” às pessoas para conseguirem detectar problemas que são suspeitos. “Bandeiras vermelhas”, que são alertas para elas procurarem ajuda. Não quer dizer que correspondam a um diagnóstico e que precisem de ajuda médica ou tratamento. Hoje em dia nos países mais ricos, certamente no meu país também e acho que em outros países, para além do conhecimento do déficit de diagnóstico há também um excesso de diagnósticos errados. Ou seja, há um diagnóstico excessivo de pessoas que meramente têm um sofrimento face às circunstâncias adversas que justificam aquele sofrimento. Hoje em dia nas sociedades de grande consumo e de bem estar o sofrimento passou a ser equacionado como algo patológico. Quer dizer, tudo que é desagradável passou a ser descarregado no serviço de saúde. E não é verdade, o sofrimento faz parte da vida. Não nos safamos de sofrer, não nos safamos de perder pessoas e coisas que estimamos e temos que ter boa saúde mental para lidar com isso.

Na segunda conferência, o senhor falou sobre o suicídio e as crises econômicas e que, em sua opinião, não há uma relação tão direta entre esses fenômenos. O senhor acha que a última crise econômica mundial ou a realidade financeira de um país afetam o número de suicídio ou mesmo a saúde mental da população?

Afeta. Não há dúvida nenhuma.  A questão é que nem todas as pessoas que estão em um estado de pobreza têm doenças mentais ou correm o risco de suicidarem. Portanto, tem que haver mais qualquer coisa com a qual a pobreza interaja. Que tenham sido abusadas em criança, ou tenham familiares, nomeadamente, ascendentes doentes mentais. Ou que de repente percam o emprego, ou que de repente se divorciem de uma forma muito agressiva ou violenta, ou que percam um ente querido com uma morte súbita. Todos esses efeitos adversos vão interagir com a “qualquer coisa” dentro do indivíduo que faz com que ele fique mais do que triste, faz com que ele não consiga “dar a volta”. Ou seja, é preciso haver uma predisposição genética que faz com que algumas pessoas de fato sejam mais vulneráveis. Tal como algumas pessoas são mais vulneráveis à diabetes porque tenham problema na regulação do açúcar ou que sejam mais vulneráveis à hipertensão arterial, também há algumas pessoas que geneticamente tem problemas na regulação do humor. O humor é uma função mental que se destina a estarmos prontos a fazer face aos diversos desafios do dia a dia no nosso mundo. E nas pessoas que são mais vulneráveis a esse mundo, as doenças aparecem com mais facilidade. As crises vão e vêm. E vão continuar a ir e a vir. E o que é mais interessante é que algumas sociedades, algumas comunidades, nas crises, aumentam a resiliência. As pessoas aumentam o suporte social, aumentam o capital social, as pessoas cerram fileiras. Um pouco como no futebol. As pessoas cerram as fileiras e tentam puxar pelo time. E penso que isso tenha sucedido em Portugal em que as famílias voltaram a ser as famílias nucleares. Os avôs, os pais, voltaram a juntar-se e a partilhar o rendimento.

No Brasil há um consenso entre a mídia e outros setores de não se falar abertamente sobre o suicídio quando ele é cometido. Claro que pontualmente quando uma pessoa famosa se mata isso é divulgado, mas de maneira geral não. Há uma ideia que de quando se fala sobre o suicídio na mídia ele pode aumentar. Como é feito na Europa e qual sua opinião sobre isso?

É exatamente a mesma coisa. Se a prática é essa no Brasil, ela é muito boa. É a prática correta, são as boas práticas propugnadas pela Organização Mundial da Saúde. Ou seja, nós sabemos que hoje em dia quando um suicídio individual é comunicado fazendo ênfase da identificação da pessoa, no método utilizado, na palavra suicídio com fotografias é como uma glorificação, e, ao mesmo tempo, como a normalização da coisa. Isso faz com que pessoas mais frágeis, que tenham acesso a esse tipo de notícias, sintam isso como um reforço das suas fragilidades. De que o sentem é muito semelhante àquilo que vêm na mídia. Mas a mídia pode ter um papel importantíssimo. Portanto, é verdade que se tende a respeitar e a seguir as boas práticas de não divulgação do suicídio. Mas também é verdade que muitas vezes a mídia não faz aquilo que poderia fazer. Por exemplo, comunicar ao grande público que uma pessoa famosa morreu e que morreu pelas suas próprias mãos, mas dizendo a verdade. Dizendo que esta pessoa não estava bem, que estava doente. Tinha dificuldades em um determinado período de tempo, e descrever os sintomas dessa pessoa. E que qualquer um pode pedir ajuda e dizer onde elas podem ser ajudadas.  Se é verdade que existe um efeito mimético e não protetor ao noticiar mal o suicídio, também é verdade que existe o efeito protetor e multiplicador de noticiar bem o suicídio. Falar sobre suicídio, como estamos fazendo agora, não está demonstrado que se promova o suicídio. Estamos sim promovendo conceitos corretos junto à população.

 

 

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